A revolução conduzida pela Blockchain

“A blockchain dá-nos um grau de confiança nas transações como nunca tivemos”

O Banco e Eu

Entrevista essencial sobre conceito e prática deste sistema. Paulo Amaral, professor na Católica, antecipa o grau de disrupção. 02-10-2020

O relato é entusiasmante e faz-nos pensar sobre um futuro verdadeiramente disruptivo. Paulo Cardoso Amaral, professor da CATÓLICA-LISBON Business&Economics e coordenador  do Executive Master in Management Specialization in Digital Innovation explica o rumo  que blockchain ditará na organização da economia e das nossas vidas.

 

Qual a maneira mais fácil e percetível de explicar este conceito Blockchain e no que consiste?

A blockchain é apenas um exemplo de um sistema operativo distribuído, que faz uso intensivo da criptografia, garantindo que o seu conteúdo é imutável e está protegido. Há outros sistemas que fazem o mesmo. Como sistema operativo que é, além de guardar informação e é também capaz de executar transações - potencialmente as mesmas que temos nas aplicações atuais.

A grande diferença está no facto de ser um sistema operativo distribuído e acessível de forma parecida à computação na cloud. Neste caso, porém, a imutabilidade e partilha alteram totalmente as propriedades das transações. 

Por outras palavras, como sistema autónomo que é, a blockchain passa a dar-nos um grau de confiança nas transações que nunca tivemos até aqui e por isso o seu impacte nos mercados será mais disruptivo que a própria internet.

 

Qual vai ser o seu primeiro impacte, aquele mais imediato?

Bom, o mais imediato já se fez sentir com as cripto-moedas, que já têm mais de dez anos. O passo seguinte é o das funcionalidades nos diversos setores, começando pelo arquivo seguro da informação – a chamada tokenização de ativos, sejam eles informação ou reais. Não esquecer que os ativos têm associadas funcionalidades e direitos. Tudo isso pode ser sujeito à programação imutável e confiável na blockchain.

“Este impacte tem de começar pelo sector financeiro”

 

Prevê que seja um fenómeno súbito ou de vagarosa repercussão?
Se o impacte potencial é devastador, o fenómeno deverá ser vagaroso, pois nada de realmente disruptivo acontecerá sem uma profunda alteração da legislação e da regulação – e isto de forma coordenada.

Ou seja, como os fenómenos de disrupção são essencialmente globais (como é o caso das Big Techs a que atualmente presenciamos) sem uma alteração, coordenada internacionalmente, da legislação, a disrupção só pode acontecer nas áreas onde a regulação ainda não chegou. De outra maneira, a regulação teria que ser alterada para o permitir.

Podemos acreditar que é possível viver ao lado da regulação, mas essa não é a minha crença nem a minha posição. Os reguladores sabem que a criação de valor depende das regras e do equilíbrio que conseguirem permitir e incentivar no mercado, e, na minha opinião, estão na primeira linha da mudança.

 

Mas quais as principais implicações na vida das pessoas comuns? De que modo as afetará?  

Em muitos aspetos (sorriso).

Primeiro, ao nível do emprego. Muitos dos trabalhos de tratamento puro de informação, incluindo clearing e compliance deixam de ter lugar. Imagine só o impacte que isto pode ter no sistema financeiro do ponto de vista do emprego.

Depois, a nível pessoal, na forma como interagimos com o tecido empresarial e com as suas propostas de valor. Vamos passar a ser donos da nossa informação, o que hoje, de facto, não somos. Só isso tem um impacte enorme.

Mas também na vida das empresas, talvez reequilibrando o tecido empresarial a favor das empresas que não fazem uso do conhecimento globalizado sobre cada um de nós para criar valor. Pode vir a dar lugar aos mais pequenos outra vez, ao invés da concentração que estamos assistir em poucas empresas ao redor do mundo, em particular nos EUA e na China.

 

Mas estes efeitos visam apenas a vida bancária? Ou implica ondas adicionais de mudança?

Este impacte acontecerá em todo o lado mas, tem de começar pelo sector financeiro. É um sector particularmente apropriado por estar baseado exclusivamente em informação e também porque suas características de confiança e de suporte a ecossistemas de utilizadores o tornam no mais atrativo. Não é aliás por acaso terem sido as cripto-moedas o primeiro exemplo prático.

Apesar de serem apenas um curiosidade até esta altura, veja bem a tinta que já correu à conta disso. Mas o mais interessante é que o sector financeiro é suporte de todos os outros. Será preciso dizer mais?...

“A proteção de dados fica mais protegida”

 

E a questão da privacidade, da proteção de dados… Fica ameaçada ou protegida? Porquê?

Fica protegida, ao contrário do que se visto escrito por aí. Por estranho que possa parecer, não é pelo facto de a informação ficar indelével na blockchain que passamos a ter menos controlo, incluindo o direito de ser esquecido. Outras propriedades da blockchain permitem passarmos a ter outra vez o controlo da nossa informação devido à criptografia.

As Big Techs é que não vão gostar. Já os bancos, é diferente. Com a regulação apropriada, os bancos podem ser os fornecedores certos do suporte à informação confidencial e da participação no ecossistema económico, o qual vive das trocas de informação. O mundo está a mudar. É verdade que há atividades, empregos, empresas, e até sectores inteiros, que deixam de ter lugar. Mas também é verdade que novas necessidades vão aparecer e esta é uma delas. E das mais importantes.

 

Como resumiria as principais vantagens desta implementação?

Além das vantagens já enunciadas, devemos olhar para as necessidades dos vários ecossistemas. Nenhuma blockchain será útil apenas para uma empresa. Como sistema operativo distribuído que é, a blockchain cria valor para várias entidades ao mesmo tempo, sejam elas parte do mesmo ecossistema, ou até para vários ao mesmo tempo.

As vantagens são enormes, pois as alterações vão muito além da virtualização da cadeia de valor com processos inter-empresa, que é o que temos assistido desde o aparecimento em força da Web.

Estamos a falar em redesenhar a cadeia de valor completa. Uma espécie de reengenharia aplicada a toda a cadeia de valor, e não apenas dentro das empresas. Uma nova forma de fazer estratégia que e comecei a trabalhar na Católica com os meus alunos desde o ano passado.

“O futuro só pode ser diferente e fascinante”

 

E as dificuldades?

As dificuldades não são tecnológicas, nem apenas de gestão da mudança como até aqui. Estamos a falar de conseguir fazer evoluir ecossistemas inteiros, muitas vezes de âmbito transfronteiriço. Já referi as dificuldades de legislação e de regulação. Em cima disso vamos ter as dificuldades de adaptação dos processos inter-empresa com a agravante de estarem a ser redesenhados. Curiosamente, já temos teoria testada para intuir essa evolução, incluindo oportunidades e riscos, e a própria estratégia. A dinâmica competitiva está a mudar e é contra-intuitiva. O futuro só pode ser diferente e fascinante.

 

Quais as zonas geográficas mais avançadas na sua aplicação? Que exemplos nos pode dar?

China. Indiscutivelmente. Primeiro porque não têm problemas de regulação e depois porque a forma como lidam com os seus ecossistemas é mais avançada que no ocidente. Chega-nos informação de que na China, há empregados que já estão a ser pagos em cripto-moeda estatal a partir deste ano. Isto pode ser o início da evolução de todo o sistema financeiro - com esta tecnologia. O resto virá como consequência.

 

E no ocidente?...

Bem, já no ocidente, andamos a discutir o Facebook …e se o seu sistema Libra conseguirá transformar-se em banco central. Sinceramente... Enfim, mas nem tudo é mau…

Há países como o Reino Unido, a Alemanha, França, Luxemburgo, Suíça e Estónia que têm feito evoluir a sua legislação. Infelizmente não todos, e está infelizmente a acontecer sem uma visão clara e coordenada de Bruxelas - no caso da UE. A legislação que está a sair é dispare na sua essência. Os EUA também estão na linha da frente.

Podia dar exemplos de investimentos, e dos primeiros passos da blockchain, rigorosamente em todos os sectores principais da economia. Mas, para se falar em “mais avançado” temos de olhar para o que tem mais impacto nas nossas vidas, daí termos de avaliar a regulação, tal como já referi.

Parece-me que, desta vez, vamos mesmo de ter aprender com a China, e se eles sempre conseguirem levar para a frente a substituição do dólar norte-americano no seu comércio internacional, talvez seja o wake-up-call que precisamos para que a regulação leve este tema com a seriedade que merece. Isto, a ver se acabamos - de uma vez por todas - de discutir a curiosidade irrelevante das cripto-moedas e nos concentramos nas atividades da economia que criam verdadeiramente valor.

 

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